terça-feira, 19 de junho de 2012

"Ela teimava em ser diferente, e ela era."

“Geralmente carrego livros comigo. Ou escuto música no meio da multidão. Não gosto de aglomerações. Prefiro mundos particulares.”





“Ando precisando de um tempo para mim, um longo tempo. Uma distância de tudo, de todos. Tempo para pensar e repensar, colocar tudo em ordem. É difícil, eu sei, mas tudo isso aqui não pode continuar bagunçado dessa maneira. Atitudes têm que mudar, sentimentos também. Poucas coisas permanecerão, muitas irão. Ao longe de tudo, máscaras irão cair, e verei o que é verdade e o que é fantasia. Preciso esvaziar-me, e com calma, repôr tudo no seu devido lugar, como deve ser.” 





 O sol mal havia nascido quando deixei as dependências do dormitório. Tudo parecia ainda incrivelmente calmo, talvez por ser domingo, um dia inútil no calendário escolar, ou por ainda ser realmente muito cedo. Particularmente eu preferia assim. Gostava de ter meus pensamentos para mim, sem precisar me preocupar com o que acontecia no exterior. 


Caminhei pela grama  rala do outono canadense, o dia frio, fizera com que eu não só saísse com o uniforme de educação física, já que minha intenção aquela manhã era uma caminhada, não pelo exercício em si, mas pelo momento que eu tinha de paz, como também com um moletom da escola por cima do uniforme, em geral, até mesmo em dias tidos como quentes, o Canadá parecia ser gelado. Pássaros e esquilos cruzavam meu caminho, conforme eu continua a andar em direção a Floresta, e era inevitável não pensar como seria tudo melhor se os habitantes do planeta fossem apenas estes animais inocentes.


Meu mundo ainda girava a respeito do meu futuro. Sobre o que eu faria, e o que decidiria. De repente tudo me parecia tão sério, tão coisa de gente grande, que desejei pela enésima  vez, nos últimos tempos, só ter medo de escuro de novo. 


Avistei ao longe, quando já estava quase no meio da floresta uma figura humana. Diferente, eu diria, não um diferente ruim...só um diferente perdida, eu acho. Abaixei os olhos, encarando meus fiéis escudeiros, o par de allstar preto. De certo deveria ser alguma das alunas que escapara na calada da noite e agora tentava voltar ao dormitório sem ser percebida. Em um ato de cumplicidade, me mantive com os olhos baixos e, linha reta, mantendo meu caminho. Percebi que ela havia parado, não por ter levantando os olhos, eu ainda olhava para baixo, mas olhando os pés dela vi que não se moviam, e parei, a tempo para não causar um acidente ou algo do tipo. Parecia que era de propósito, o que ela queria afinal? Ser de fato notada?


Levantei os olhos, encarando a menina loira, e arqueando uma das sobrancelhas, querendo entender do que se tratava tudo aquilo. Eu só queria caminhar em paz, não era pedir muito. Quase de imediato ela disse algo em alemão, reconheci pelos prefixos próximos do inglês, que me fez continuar encarando-a, me perguntando se ela estava me xingando ou me elogiando.


"No...no compreendo. Español?"  Tentei me comunicar, em espanhol carregado de sotaque americano, por que depois de minha língua nativa, o inglês, espanhol era um dos únicos que eu arriscava mais ou menos, já que meu francês era o que pode-se chamar de precário.


Ela fez sinal de negativo com a cabeça. Parecia toda confusa e perdida naquele conjunto rosa, que com certeza não era o uniforme da escola, tão pouco eu já a havia visto por lá.


"Inglês?" Ela arriscou


Eu concordei imediatamente com a cabeça, falar minha língua de berço seria muito mais simples...pelo menos para mim. 


" Sim...sim! Escola?" Apontei na direção do colégio perguntando se era para lá que ela estava indo. Não parecia ter idade para já ser formada. Mas quase que no mesmo instante ela negou com a cabeça.


"Onde estamos?!" Ela me perguntou, e eu franzi o cenho, mas antes que pudesse responder, ela voltou a falar, como se procurasse as melhores palavras para falar em inglês, já que não parecia ser a primeira língua dela. "...digo...em que país? Argentina? Aqui é América Latina?!" 


Neguei com a cabeça, se ela pretendia estar na América Latina estava bem longe...talvez eu a tivesse confundido com minha tentativa de espanhol. "Não...é..quero dizer, estamos no Canadá, América do Norte..."


Ela pareceu surpresa, mas ao mesmo tempo aliviada. Continuei encarando a menina curiosamente, confesso, que quem estava começando a ficar perdida com aquele papo era eu.


" Menos mal! Tenho uma casa em...em algum lugar perto daqui, ...eu acho...tem algum mapa?"


"Ahn...tenho..." Parei, tentando organizar minhas ideias, ainda me surpreendia como ela poderia  vir para um lugar sem saber onde estava...quero dizer, não é que ela não sabia o nome da rua, ou do bairro, ela não sabia em que país...se quer continente estávamos. " Na verdade ali..." Apontei novamente na direção do colégio. "Vai encontrar os mais diversos atlas que precisar na biblioteca mas...." Eu fui interrompida por ela, que pareceu se animar cheia de esperanças de voltar...de onde quer que ela tenha vindo.


" Me ajuda?"


"Que?" Perguntei sem entender, eu não estava acostumada a ajudar pessoas. Quer dizer, não estava acostumada em ajudar nada além de problemas de Física da monitoria que eu dava as sextas feiras.


"A voltar pra casa." Ela disse em um sorrisinho torto, de uma forma que era quase impossível dizer não.


"Er...." Fiquei analisando as probabilidades de sermos pegas no Domingo...e em que isso acarretaria em meu futuro na escola, mas ainda sim ela continuava a me olhar com aqueles olhos redondos. Não era legal estar perdida, e eu sabia como era isso. Suspirei, olhando na direção do colégio. "Tudo bem...mas antes você vai precisar se disfarçar...ou teremos problemas.." Voltei a olhá-la, e a vi imediatamente concordar. "Ahhh...e se perguntarem alguma coisa...você é aluna de intercambio!" Ela concordou mais uma vez, e antes que ficasse mais tarde, e o resto começasse a acordar, indiquei o caminho. "Vem vamos..."


Quando estávamos quase na metade, ela esticou a mão para mim. 


"Sou Jenny" A menina loira disse de uma forma simpática, sorrindo.


" Lizzie!" A cumprimentei, retribuindo o sorriso, e apertando mais os passos para a entrada lateral do dormitório. Tudo parecia ainda calmo, mas da mesma maneira me mantive cuidadosamente em silencio, e pedi o mesmo para ela. Subimos até o terceiro andar, onde ficava meu quarto.


Assim que chegamos abri a porta, deixando-a entrar primeiro, e olhando mais uma vez para ambos os lados para me certificar de que não tínhamos testemunhas. 


"Vou procurar um uniforme pra você...só um instante." A olhei, e sorri de canto, indo em direção a minhas gavetas. "Pode ficar a vontade..." Indiquei para as camas e poltronas que tinham no quarto, a maioria das vezes sozinha, já que eu sempre acabava ficando sem colegas de quarto. Vasculhei a gaveta até achar um conjunto completo do uniforme, e caminhei até ela, entregando a pequena pilha. " Aqui está...e logo ali tem o lavabo..." Indiquei para o pequeno banheirinho que tínhamos no quarto.


Ela seguiu, e eu fui na direção de minha cama. Já que iriamos para a biblioteca eu teria vários livros para devolver...o que poderia servir também de disfarce, porque se eu estivesse sem livros, não seria eu. E eu já estava toda tensa de ter que mentir...melhor que mentisse  bem, ou tentasse pelo menos...


Assim que a vi saindo do banheiro, me levantei com a pilhas de livro. E logo  me chamou atenção a gravata torta. Dei uma risada, não por deboche, mas sim por lembrar de quando eu cheguei no colégio anos atrás. Eu se quer conseguira por a gravata, ela estava mais adiantada do que eu. Apoiei os livros no baú próximo a porta, e me aproximei dela. "Pera ai...só preciso ajeitar isso pra você..." Ela pareceu bufar, achando toda aquela coisa de gravata um saco, e eu não a culpava. Ri, ajeitando a gravata no colarinho da camisa. Me afastei, para certificar de que agora estava reto. "Prontinho...agora sim! Se quiser afrouxar é só puxar a parte posterior da gravata  segurando o nó..."


Avisei, e a vi fazer imediatamente isso. Ri mais uma vez pelo jeito engraçadinho da menina.


"Não sei como vocês aguentam isso..." A loirinha resmungou.


"Nem eu...na verdade...mas não temos opção." Dei de ombros. "Vamos?!" Indiquei com a cabeça para a porta, não queria deixar ficar muito tarde, porque quanto mais tarde, mais problemas poderíamos ter. E ela concordou com a cabeça. Peguei os livros, e saímos, indo em direção a biblioteca a passos apressados.


Quando estávamos quase chegando voltei a falar. " Como você veio parar aqui?!...digo...como não sabia onde estava?" Perguntei o que estava encucado em minha cabeça.


Ela mordeu o lábio inferior, como se não tivesse certeza da resposta, e apenas disse. "É complicado."


"Complicado como?" Perguntei de maneira curiosa, coisas complicadas eram quase a minha pós graduação.


"Eu não viajo como..." Ela fez uma pausa, talvez pela minha cara de dúvida a respeito do que ela falava. "...como pessoas normais...eu não preciso de aviões, ônibus...trens..." Conforme ela falava, eu tentava fazer as opções de que outras maneiras para viajar sobrariam...e na verdade não haviam muitas. Olhei para aos arredores, e a preocupação de que a qualquer momento os corredores podiam se encher se fez em mim. 


"Vamos entrar...e conversamos lá dentro, ok?" Ela concordou com a cabeça assim que eu disse.


No momento adentramos ao local, deixei os livros no carrinho de devolução, e a chamei para irmos direto para as mesas afastadas ali na biblioteca, por hora, sem atlas nenhum, eu ainda queria entender toda aquela história.


Nos acomodamos em uma das mesas, e pude notar, ela ainda de olhos baixos, como se muitas coisas a preocupassem. E ela parecia movimentar os dedos na mesa, quase como se desenhasse. 


"Como você veio parar aqui?!" Fui direta, encarando-a, mas não de uma forma inquisitória, e sim de maneira curiosa, confusa. 


"Eu não sei..." Jenny suspirou, fazendo um biquinho ao final, e finalmente me encarando.


Ri do jeitinho dela por um instante, mas logo voltei a ficar séria. "Como não sabe?!"


"Não sei...eu fecho os olhos e...." Ela suspirou. "...acordo nos lugares..."


Franzi o cenho. Aquilo se trataria de mais alguma coisa sobrenatural?!


"E...mamãe ficará furiosa quando descobrir que eu não estou na minha cama como ela mandara..." A menina disse, e falava como se realmente estivesse encrencada. Fiquei com receio da mãe dela sem se quer a conhecer, e vi Jenny baixar os olhos de novo para a mesa, como se estivesse completando o desenho. As formas foram ganhando sentido, e com o desenho quase completo achei ter tido uma alucinação. Pisquei os olhos, apertando-os, e então voltei a encarar a mesa. O desenho continuara ali. Como ela havia conseguido desenhar?! Como...ela desenhara...P-P-Paulie...


Engoli em seco com o nó na garganta que me tomou, e respirei fundo, tentando manter minha voz calma, da mesma maneira que estava antes.


"Quem é?!" Perguntei rápido para não correr o risco de gaguejar.


Ela olhou para a mesa, como se só agora percebesse que o desenho estava visível.


"Ela?" Os olhos da loira se desviaram do desenho para mim de volta. E eu só concordei com a cabeça, sentindo meu mundo dar voltas em minha cabeça só por ter essa imagem recordada tão vivamente em minha cabeça. "É minha mãe...e só pela cara dela pode ver, ...eu estarei ferrada se não voltar pra casa..."


"S-s-sua mãe?" Foi impossível não gaguejar. Eu tinha certeza de quem eu havia visto naquele desenho. Eu não esqueceria nunca aqueles traços...aquele rosto.


Jenny concordou com a cabeça.


"Uhuum...por que?"


"Nada...nada..." Me apressei novamente. "Vem...vamos ver os atlas..." Levantei, chamando ela, e desejando mais do que nunca mudar de assunto, ou se possível acordar daquilo que parecia mais um sonho. 


Fui para a sessão de geografia, pegando aleatoriamente os atlas, como se minha mente ainda estivesse muito ocupada revivendo aquele desenho. " Eu acho que esses serão suficiente..." Apressava sempre nas palavras, para evitar ao máximo ficar de boca aberta, a vontade que eu tinha era de correr para o quarto e não sair de lá mais, mas eu havia prometido que a ajudaria, e eu faria isso, pra depois me entregar a toda aquela nostalgia de reviver tudo novamente.


"É relativamente simples...você vai ver, eu só preciso olhar o mapa, e antes que eu perceba...puff..." Ela dizia naquele jeito todo meigo, se divertindo, que agora eu mal conseguia prestar atenção.


 "Você prefere ver os mapas aqui?Ou prefere voltar para o quarto para não correr risco de ter testemunhas?" Apenas perguntei.


"Hm...acho melhor voltarmos...acho que você tem razão!" Ela sorriu, e eu peguei os atlas, seguindo logo para fora da biblioteca, tinha quase certeza que ela estava vindo junto, então não senti necessidade de checar.


"Lizzie..." Ouvi a voz dela me chamar quando já estávamos próximas ao dormitório. Parei, olhando para trás, e esperando se aproximar. " O que eu fiz?"


"Você?!" Repeti, eu realmente estava avoada, mas não era exatamente por algo que ela havia feito...quer dizer...era...ahh...era complicado.  "Não...não foi você!...quer dizer...seu desenho me lembrou alguém que eu não vejo há muito tempo...só isso...mas não foi você..."


"Hm...então não fica assim!" Ela deu um sorrisinho, tentando me fazer sentir melhor. "Quer ver,...vou te mostrar uma coisa..." Jenny olhou para ambos os lados, provavelmente para se certificar de que estávamos sozinhas, e sorriu de uma forma espevitada, tinha certeza de que ela ia aprontar e quase na sequência os livros que estavam em minhas mãos saíram levitando pelo corredor. Gargalhei, porque era inevitável não gargalhar da cena no corredor, mas no instante em que lembrei de P. levitando a moeda pela primeira vez, senti meu estômago revirar. Suspirei, e tentei ficar normal, não queria que Jenny percebesse a maneira como o desenho havia me afetado. 


"Você é estranha, sabia?!" Brinquei com ela, fazendo uma caretinha, enquanto entrávamos no quarto.


"Você também não é nada normal..." Ela devolveu, enquanto largava os livros em uma das camas.


"Ah é? o que eu tenho de estranho?" Eu sabia muito bem as inúmeras listas que já vi fazerem de mim, mas queria saber a opinião dela.


"Não sei...você é diferente...é irada!" Ela sorriu para mim.


"Irado não é bem a palavra que usam por aqui pra falar de mim...mas se você diz...acho que tá valendo..."


 Brinquei, mas no fundo eu comecei a enlouquecer, e comecei a ver Paulie cada vez mais em Jenny. Fechei os olhos rezando para as alucinações se afastarem. 

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